Notícia de 4/11/2016
Arquitetos transformam a casa – e a vida – de famílias pobres de Heliópolis, em São Paulo/SP
A casa tem uma varanda minúscula, quase um puxadinho, de onde é possível assistir ao movimento da rua. Não há garagem, janelas, quintal ou portão. Ao entrar, surge o primeiro obstáculo: degraus irregulares e íngremes que obrigam quem entra a usar a lateral da solas dos pés e até mesmo as mãos para se equilibrar.
Vencido o primeiro desafio, outra característica do pequeno sobrado: não há portas, mas buracos na parede que fazem a vez de acesso entre os cômodos. Acesso este que também precisa de um malabarismo – é hora de agachar, usar os joelhos e a flexibilidade da coluna para atravessar até a cozinha.
E este é só o primeiro andar da casa em que Angélica da Silva reside em Heliópolis, na zona sul de São Paulo.
“Estou sem trabalhar. Meu filho está preso. Meu marido faleceu. Era diarista e fui lavar a cozinha da dona Cida, mas bati o joelho e me machuquei. Dói muito. Tá vendo os degraus? Depois que eu desci uma vez, só subo a escada no último caso. Aqui é a minha cozinha. Tenho que entrar de quatro por esse buraco, que é a minha porta. Dói o joelho e a coluna. Só entro porque sou obrigada, tenho que fazer a comida. Eu tenho vergonha de tudo na minha casa. As senhorinhas da igreja não conseguiriam passar por essa porta. O meu maior sonho é ver minha casinha reformada.”
A situação descrita é vivida diariamente por dona Angélica há 12 anos e sua realidade está longe de ser exceção. Grande parte das famílias que vivem em Heliópolis reside em casas com estruturas precárias, problemas de infiltração, mofo, umidade, pouca ventilação e iluminação.
Maria Eliene de Lacerda, outra moradora da comunidade, vive em uma casa em que as janelas oferecem vista para o nada. Ou melhor, a vista é interrompida pela parede de tijolos do seu vizinho. Não existe luz natural na casa de quatro cômodos, em que vivem as duas filhas e o seu marido, que tem deficiência física.
“Na minha casa tinha mofo, barata e rato. A gente tinha que sair para poder respirar melhor. Era sufocante ficar aqui dentro.”
Hoje, a situação descrita por Maria Eliene é passado. Ela mostra com orgulho o novo quarto das filhas, a cozinha com novos azulejos e o grafitado lilás na parede de casa. “É a única da comunidade com esse grafitado bonito”, conta alegremente. Atravessando a rua, Angélica, vizinha de frente, ainda espera o começo das obras na sua casa.
As duas têm em comum o fato de suas vidas terem sido transformadas por profissionais que entendem de construção e arquitetura. Elas fazem parte de um grupo de moradores que recebe o apoio do projeto Habitat na Comunidade, iniciativa da ONG Habitat para a Humanidade – que oferece uma consultoria de arquitetura e crédito para reformas em moradias autoconstruídas de famílias em situações insalubres e de vulnerabilidade social.
Mariana Estevão conhece bem essa realidade. Ela é arquiteta especializada em saúde pública e trabalhou no programa de urbanização de favelas cariocas, o Favela Bairro. De toda a experiência, ficou a memória da precariedade dessas áreas habitacionais.
“As famílias me chamavam para ver como eram as suas casas, e eu ficava angustiada. Não concebia como as pessoas moravam naquela condição e não tinham a consciência de que a insalubridade poderia levar a riscos à saúde e acidentes.”
A angústia se transformou em projetos. Ela criou a ONG Soluções Urbanas e o Arquiteto da Família, programa iniciado em 2009 no Morro Vital Brasil, em Niterói (RJ), com apoio do Instituto Vital Brasil. Agora, trabalha como diretora de projetos na Habitat para a Humanidade em São Paulo.
Inicialmente, a ideia era criar um modelo de política pública como o Saúde da Família, mas voltada para habitação. A ideia foi tomando forma; o objetivo era levar conhecimentos de arquitetura para transformar a realidade local. Cerca de 400 famílias moram no morro carioca e pelo menos 150 já foram atendidas.
“Começamos a experimentar. No início não tínhamos metodologias definidas, não sabíamos a recepção, as reais necessidades e os custos. Hoje, fazemos o diagnóstico da casa, identificamos os problemas principais, planejamos as intervenções necessárias e definimos as prioridades.”
Cerca de 500 quilômetros de distância e milhares de habitantes a mais separam a experiência no Morro Vital Brasil de Heliópolis. Uma das maiores favelas do País, a região em São Paulo hoje compreende cerca de 200 mil pessoas e 18 mil imóveis. A ocupação da área começou em 1972, quando a prefeitura de São Paulo, sob o pretexto de abertura de novas vias, transferiu 153 famílias moradoras de favelas em Vila Prudente e Vergueiro para o terreno de 1 milhão de metros quadrados.
Se no Morro Vital Brasil o Arquiteto da Família é uma ferramenta para o desenvolvimento de propostas, um laboratório teórico e prático sobre questões habitacionais, em Heliópolis a ONG Habitat para a Humanidade desenvolve o projeto Habitat na Comunidade em maior escala. E é a arquiteta Mariana Estevão quem está, também, à frente dos programas que promovem o desenvolvimento da favela.
Lucineia Monteiro da Silva mora em um quarto-cozinha com mais quatro pessoas. Assim como dona Angélica e Maria Eliene, ela foi beneficiada pelo projeto. Depois que saiu do emprego para dar atenção ao seu filho deficiente, ela não pôde pagar o aluguel. A solução foi construir uma casa no espaço que sobrava do terreno de sua sogra. Era a realização do “sonho da casa própria”.
“Construímos sem orientação de ninguém. Tinha muito mofo e vazamento. Toda semana meu filho era internado, porque ele tem a imunidade baixa. O teto era preto e tinha cheiro de esgoto.”
Somente oito anos depois que se mudou para Heliópolis, a casa de Lucineia está sendo reformada: dois quartos estão em construção e o problema do mofo e vazamento foi reparado. Tudo sob a orientação dos profissionais da Habitat.
“Nem acredito que vamos ter tudo isso e vamos pagar tão pouco, fora toda a atenção que recebemos da equipe. Vai mudar tudo. As crianças não vão precisar ficar na rua porque vai ter espaço em casa.”
A situação de Maria Eliene também foi transformada. Para ela, os principais benefícios da reforma foram as melhorias na saúde das filhas, que chegaram a ter pneumonia e bronquite em decorrência do mofo. Agora a casa também é mais confortável para o marido que usa cadeira de rodas — ele circula melhor entre os quartos e não tem problemas em respirar dentro da residência.
“O cheiro mudou, agora está bem melhor. Pintei até as paredes! Eu não deixava ninguém entrar na minha casa antigamente. Agora, as pessoas vêm aqui e elogiam. Elas me dizem: ‘nossa mas como ficou bonito. Como você conseguiu?’. E aí eu explico como participar do projeto mudou minha rotina.”
O projeto Habitat na Comunidade acontece em Heliópolis desde 2013. Mais de 760 famílias já tiveram suas casas reformadas e hoje residem em lares mais seguros e saudáveis.
Etapas: Assistência técnica da obra e acesso a crédito
Uma sala pequena em um prédio azul e baixo de Heliópolis abriga escritório da ONG. É lá que as famílias podem procurar os responsáveis do programa para o cadastro, sempre às terças e quintas-feiras. Nesse atendimento, o interessado preenche uma ficha que será avaliada por uma equipe social e de construção.
Os critérios de participação levam em conta a vulnerabilidade social – famílias lideradas por mulheres, com crianças e idosos, que tenham doenças crônicas ou deficiências têm prioridade. Além disso, a renda máxima familiar é de 3 salários mínimos – e é levada em conta a precariedade da habitação – se há estrutura em risco, se mais de 3 pessoas dividem o mesmo cômodo, se há falta de ventilação e iluminação, ou presença de umidade etc -. Ainda, não é exigido o título de propriedade do imóvel, apenas a comprovação de posse.
A partir da inclusão no programa, a família recebe visitas técnicas para a elaboração de diagnóstico, definição da obra a ser executada e apresentação do orçamento. Todas as reformas são acompanhadas por um arquiteto e um técnico de construção.
O estudante de engenharia Lucas Cabral faz parte desse time. Para ele, trabalhar em uma construtora não seria tão gratificante quanto a função que exerce na comunidade.
“É um trabalho que não dá para medir em satisfação. Eu sempre passei pela comunidade, mas nunca tinha entrado na casa de ninguém. A minha primeira semana na ONG foi um choque. Eu só entendi a importância do meu trabalho quando eu entrei na Habitat. As pessoas não entendem a dimensão do que é poder trabalhar com o sonho das pessoas por conta de sua profissão.”
Para o técnico, uma das principais dificuldades em trabalhar com casas autoconstruídas é pensar em intervenções que sejam eficientes para solucionar os problemas de estruturas que não foram planejadas. “Na autoconstrução as pessoas fazem coisas muito erradas estruturalmente. Você corrigir o trabalho dos outros é muito complicado. Às vezes é mais fácil derrubar tudo e começar do zero, como já tivemos que fazer em algumas casas”, comenta.
O valor total da obra é repartido entre a ONG e o morador contemplado. Este deverá arcar com 30% da reforma, podendo pagar em até 18 parcelas. O financiamento é administrado por uma organização social local, a UNAS. Os outros 70% ficam a cargo da Habitat, que consegue captar recursos com a iniciativa privada.
Porém, esse modelo de financiamento está sendo modificado. Até o final de 2016 a ideia é que se tenha criado um Fundo de Crédito Habitacional comum e, a partir disso, o valor dos 30% não será mais fixo e sim proporcional à capacidade de pagamento de cada família. A ideia é que a análise de crédito seja feita antes da definição da obra e, com essa mudança, a ONG tenha um modelo mais sustentável e capaz de atender um número maior de famílias.
“O meu maior sonho é que a gente possa atender o maior número de famílias possíveis”, comenta Lucas.
Mas não é preciso ser profissional para ajudar. O programa Habitat na Comunidade trabalha com esquemas de mutirões de reformas, oficinas e capacitações com apoio de voluntários. Também é possível apoiar a causa da ONG por meio de doações.
Os desafios do acesso à moradia adequada
“Temos que entender que a existência das favelas está diretamente ligada a uma falha fundamental das políticas urbanas brasileiras: seu caráter excludente. Jamais as políticas urbanas brasileiras tiveram como objetivo garantir um espaço adequado, um lugar para a população poder viver. Enquanto a política urbana brasileira continuar submetida aos interesses do complexo imobiliário-financeiro, vamos continuar reproduzindo as favelas.”
O argumento é de Raquel Rolnik, em entrevista ao jornal Zero Hora. A urbanista foi relatora especial para o direito à moradia adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU e é uma crítica ao modelo de financeirização dos territórios e habitações que se perpetua no Brasil e no mundo – tema que discute em seu livro Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças.
“A crença de que os mercados podem regular a alocação da terra urbana e da moradia como forma mais racional de distribuição de recursos, combinada com o financiamento do espaço construído, levou as políticas públicas a abandonar os conceitos de moradia como um bem social e de cidade como um artefato público. As políticas habitacionais e urbanas renunciaram ao papel de distribuição de riqueza, bem comum que a sociedade concorda em dividir ou prover para aqueles com menos recursos, para se transformarem em mecanismos de extração de renda, ganho financeiro e acumulação de riqueza. Esse processo resultou na despossessão massiva de territórios, na criação de pobres urbanos ‘sem lugar’, em novos processos de subjetivação estruturados pela lógica do endividamento, além de ter ampliado significantemente a segregação nas cidades.”
Não é preciso ser teórico, contudo, para entender do que Rolnik fala. Basta olhar para qualquer cidade do Brasil.
De acordo com o censo de 2010 do IBGE, o Brasil possui mais de 15 mil aglomerados subnormais, onde estão instalados 3,2 milhões de domicílios abrigando 11,4 milhões de pessoas.
Aglomerados subnormais são conjuntos constituídos por 51 ou mais unidades habitacionais caracterizadas por ausência de título de propriedade e por características como a irregularidade das vias de circulação e a carência de serviços públicos essenciais (como coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água, energia elétrica e iluminação pública). Em bom português, é assim que o instituto conceitua as favelas.
Ainda de acordo com o censo, 1,6% dos moradores das favelas havia finalizado o curso superior. 31,6% ganhavam até meio salário mínimo. 27,8% não possuíam carteira de trabalho assinada. 49,8% desses aglomerados encontram-se na região Sudeste do País. Destes, 25% foram formados em encostas, e 92,3% das casas são de alvenaria.
Esses últimos dados precisam ser analisados com atenção, pois são causa e consequência de dois problemas maiores que permeiam o processo de favelização do Brasil: a insalubridade das moradias autoconstruídas e o processo de especulação imobiliária e fundiária que marca a urbanização das cidades. Daí a necessidade de iniciativas como o projeto Habitat na Comunidade.
Uma vez que as cidades são formadas sem o urbanismo estratégico que deveria definir como elas vão crescer ou se renovar, surgem as habitações de péssima qualidade. Se o acesso ao território passa a ser determinado por regras que excluem aqueles em condições de vulnerabilidade social, o que se vê é, de fato, uma guerra por lugares.
Para além da dificuldade de programas de créditos enfrentados pela ONG, a arquiteta Mariana Estevão chama atenção para outra questão: o custo da assistência técnica para as moradias inadequadas. A Lei 11.888/2008 é o marco regulatório que garante esse tipo de assistência gratuita às famílias de baixa renda, mas o serviço não é garantido pelas prefeituras.
Em abril deste ano, o Ministério das Cidades havia publicado no Diário Oficial da União uma resolução que recomenda a inclusão de melhorias habitacionais em programas como o Minha Casa, Minha Vida. A ONG Habitat para a Humanidade participou ativamente dessa proposta. A arquiteta tem esperanças que esse modelo de política pública seja colocado em prática para ampliar o acesso de famílias às moradias adequadas, não só aquelas que contam com o apoio da ONG, mas todas as que residem em situações de insalubridade pelo País.
Porém, na visão de Rolnik, o que se vê são governos que têm cada vez mais renunciado de sua função de planejar e projetar as cidades: “O que temos não é política habitacional. É política econômico-financeira. Precisamos entender que as necessidades habitacionais são muito diversas. É preciso ter outras políticas, inclusive políticas que entendam a dimensão social da moradia e a moradia como um direito humano.”
Fonte: Brasil Post